Titulo: Compor: inspiração divina transpiração humana
Postado por: Valdir Pereira da Luz
Compor: inspiração divina transpiração humana
Como compositor cristão sou constantemente abordado com a seguinte questão: "Que inspiração maravilhosa você teve para escrever essa canção de que gosto tanto? Teria sido uma experiência arrebatadora? Algum anjo a cantarolou pra você numa visão?"
Além do constrangimento natural, resultado da percepção de que em nada sou superior a ninguém, me pergunto o que gera esse tipo de indagação.
Creio que em grande parte dos casos, essas perguntas são fruto de um conceito que se prolifera entre nós, e que poderia ser resumido na frase "Deus me deu...".
Explico melhor: Alguns compositores e artistas cristãos têm dito pública e repetidamente que as canções que escrevem foram dadas por Deus.
Teologicamente perfeita a afirmação. A Bíblia diz que toda boa dádiva, todo dom perfeito vem do Pai das luzes... Minha aflição reside no fato de que, muitas vezes, essa afirmação é traduzida como inspiração direta. Ou algo como, "Deus a sussurrou em meu ouvido em sonho, ou mesmo acordado, após um tempo de oração".
Meu problema com tais colocações é, em princípio, a posição no mínimo incômoda que elas produzem. Vejamos: Se Deus me deu uma composição, via ligação direta, seria esta obra de arte de algum modo passível de qualquer avaliação? Como criticar ou questionar algo que tenha vindo direto de Deus? A observação óbvia seria a de que, algo vindo Dele dessa forma jamais poderia ser criticado ou avaliado. Deus é perfeito.
Penso que tal afirmação funciona como uma espécie de imunidade clerical. Se digo que Deus me falou ou me deu algo assim, tão diretamente, sou inquestionável, intocável.
Quem ousaria fazer observações ou críticas construtivas a ... Deus?!!!
Perigoso esse tipo de colocação, você não acha?
Pra piorar o problema, observamos posturas como essa em várias áreas na vida da igreja cristã. Desde o sermão pastoral, que muitos juram de pé junto que veio direto do trono de Deus, até as famosas revelações tão difundidas (e distorcidas!) em nosso meio.
Gostaria de dizer em poucas linhas minha visão sobre o processo criativo.
Creio absolutamente que Deus nos dá as canções que escrevemos. O salmista no salmo 32, verso 7 diz: "Tu és o lugar em que me escondo; tu me preservas da angústia; tu me cinges de alegres cantos de livramento." (ênfases minhas) As canções que para Ele cantamos não são nossas. Ele nos dá.
Creio também, no entanto, que esse processo ocorre através de um filtro cultural. Nossa herança enquanto cidadãos de uma determinada localidade, nos permite ler o que recebemos de Deus através de nosso próprio 'filtro'. Obviamente que, se estamos abertos para as diversas heranças culturais e musicais que nos cercam, maiores as possibilidades de absorvermos a mensagem divina de maneiras diferentes.
Isso nos leva a ponderar que, a canção que consideramos mais inspirada ou ungida tem em si um estilo e uma concepção que é resultado de alguma berço cultural humano. O exemplo disso são as canções de louvor que cantamos na maioria de nossas comunidades: são, em grande parte, baladas de origem norte americana. Nada contra elas, pelo contrário ¾ Se bem que poderíamos como brasileiros nos aventurar a escrever coisas que digam respeito mais diretamente a nós. Creio que Deus iria sorrir com um ar de aprovação!
Vejo nisso a grande graça Dele, que se faz nosso parceiro de composições, inspirando-nos com seu Espírito, e ao mesmo tempo permitindo que utilizemos ferramentas que nos cercam para juntos criarmos...
Concluindo, tenho a firme convicção de que uma música que possamos chamar de 'celeste', só será ouvida no céu. Todas as demais, são fruto dessa parceria divina e humana, dessa mistura de Deus com os homens que se expressa, no seu exemplo mais radical em Sua própria iniciativa de tornar-se humano, na pessoa de Jesus de Nazaré.